“I’m a black ‘woman’ in a white world” — Ser mulher negra em ambientes brancos.

                                                                               Get Down - série original Netflix 


Sempre fui a mais feia da sala, a menos legal, a invisível da escola, a última da roda de amigas a beijar pela primeira vez. Nunca fui a mais inteligente, nem a primeira a ser escolhida como par na festa junina e muito menos a que recebia mais convites de festas de quinze anos. Mesmo estudando 70% do meu ano escolar em colégios particulares, onde em uma das escola possuía mais alunos ruivos do que negros, a sociedade e as pessoas do meu convívio sabiam muito bem quem eu era: uma mulher negra.

 Antes de começar a relatar minhas vivências, com pouca teoria aplicada, queria deixar algumas coisas muito bem esclarecidas. Crescendo em um ambiente de bairro nobre e com pessoas que possuíssem poder aquisitivo para fazer com que eu estudasse onde estudei, e que pagassem aulas que eu consegui ter, é gritante a quantidade de privilégios que levo comigo. Nunca, jamais, nesse texto, que é sobre como eu, uma mulher negra que cresceu em um ambiente de classe média e majoritariamente branco, estarei implicando que minhas vivências são mais graves, ou piores que alguém que não tenha passado pelo mesmo. Nunca nesse texto, terei como objetivo silenciar ou ignorar o que nós, povo preto, passamos em sua maioria. Porém, creio que existam exceções que queiram, ao menos uma vez, relatar como essas se sentem em seus ambientes. 

Minha mãe é casada com um homem branco. Um homem branco que possui capital o suficiente para ter uma casa em outra cidade para passar suas férias, um homem branco que, durante minha vida morando com minha mãe, fez questão de me sustentar. Não que meu pai não fosse presente, longe disso, mas meu pai, assim como muitos homens negros, não possuía poder aquisitivo para, por exemplo, pagar aulas de natação. Este homem branco, que é marido da minha mãe e meu padrasto, pegou pra ele a responsabilidade de me criar. Pegou pra ele a responsabilidade de me dar bons estudos, boas oportunidades, e o fez com grande desempenho.

Meus primeiros 4 anos escolares foram em uma escola pública muito conceituada e dita uma das melhores da região, ainda mais porque possuía uma diretora extremamente enérgica. Lá, como era muito nova e também por ser uma escola pública onde a maioria dos alunos eram negros, a questão racial não foi tão impactante quanto seria assim que eu me formasse.
No ano de 2010, minha mãe queria que eu começasse a estudar inglês. Nessa época, o inglês começou a ser um diferencial no currículo, e minha ela mesmo sabendo que eu era muito nova, queria que eu aprendesse desde já. Na minha primeira aula na escola de inglês, hoje eu noto, nunca fiz amizades com alunos negros por lá até porque não tinha nenhum. No mesmo ano eu havia me formado no Ensino Fundamental I (da 1ª a 4ª série) e a escola onde eu estudava só ia até a 4ª série. Decidiram que eu iria para uma escola particular perto de casa, onde minha mãe após algumas conversas com outras mães chegou a conclusão de que essa era uma boa escolha.


 1º dia de aula na nova escola: duas pessoas negras, três pessoas ruivas.
 1º festa de um colega da sala a qual fui chamada: um dos meninos mais bonitos da escola, em um jogo de verdade ou desafio, disse que não brincaria comigo por eu ser negra.

Perguntavam constantemente sobre o meu cabelo, queriam tocá-lo, perguntaram se eu não queria fazer uma dieta, perguntaram se eu era adotada. Perguntavam se eu já havia beijado, se eu gostava de alguém, e quando disse que sim e ainda revelei quem era, virei motivo de piada.

Em 2011, fui estudar em uma das melhores escolas da cidade de São Paulo na época. Uma escola elitista, racista e católica. Uma escola onde, logo no primeiro dia, alguém no fundo da sala pra chamar minha atenção gritou “NEGUINHA!”. Uma escola onde entrei com o cabelo passando pela transição capilar e fui motivo de piada (de novo). Uma escola onde os professores duvidavam da minha capacidade, onde as pessoas continuavam perguntando se eu já havia beijado mesmo elas sabendo a resposta. Uma escola onde possuía do maternal ao ensino médio 15 alunos negros (bolsistas e não bolsistas). Meus professores eram brancos, meus amigos eram brancos, e as únicas pessoas negras eram a inspetora de andar, as tias da limpeza e o tio da cantina.

Mesmo estando em um meio branco, tendo amigos brancos, eles sabiam muito quem eu era, e sempre que possível eles faziam questão de fazer com que eu me lembrasse disso. Não importava quanto dinheiro eu tivesse, a marca do meu tênis, a marca do carro da minha mãe, eles sabiam que eu não pertencia aquele lugar, e faziam de tudo pra que eu soubesse disso. Não importava o tamanho da minha casa eu nunca seria a mais legal da turma, nem a mais inteligente, nem a mais popular, muito menos a mais bonita.

Crescer um ambiente branco, sendo que este não foi feito pra aceitar e nem possuir pessoas como você é doloroso e solitário. Você cresce sem identidade, já que você faz de tudo pra se encaixar em um meio que não te pertence e se parecer com as pessoas que são daquele meio. Você cresce sem ídolos, já que seus melhores professores e todos os referenciais que você tem são brancos. Você cresce se sentindo inferior, porque todos em sua volta vão te dizer e vão fazer com o que você acredite nisso (e você vai).

Eles não estão preparados para receber pessoas negras em seus espaços até porque os mesmos não foram feitos pra gente, e isso não é só na escola. Um dia, por exemplo, fui comer pizza com a minha mãe, meu padrasto, minha irmã e meu irmão e pedimos uma mesa para 3 porque era a que estava vazia, então era só apertar e colocar um prato a mais. O garçom não colocou prato no local onde estava sentada, e ainda perguntou pra minha mãe se eu sentaria a mesa junto com eles. Por que? Ele pensou que eu fosse babá do meu irmão, já que esse é um menino branco.

Entende? O racismo presente em meios brancos e elitistas é o racismo raiz. É o racismo de onde ele nasce e é pregado sem o menor cuidado e de forma escancarada, e a ideologia em sua forma mais natural e pura, onde ela é reforçada, e ser uma pessoa negra nesse meio é tóxico, desde o fato de você reproduzir discursos meritocráticos até sua saúde mental ser extremamente debilitada. Nós crescemos nos odiando e amando brancos. Crescemos achando o preto feio, e o branco maravilhoso. Crescemos usando termos depreciativos porque foi isso que nos foi ensinado com tanto afinco que chega a ser natural e real.

O racismo dói, e acreditar que em ambientes elitizados você será isento dessa dor, é o mesmo que acreditar em contos de fadas.


 Ass: Pryscila

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