O banzo de nossas mães.
Texto colaborativo por Luana Apolinário
Fazia um tempo que ela começara a trabalhar na casa de um senhor branco, ex-militar. Me relatava sempre que a casa era grande, num lugar esquisito, solitário e perto do mar. Se perguntava pelos cantos do que adiantara esse tanto de dinheiro, se no final ficaria sozinho. Em um certo dia, o qual eu me recordo com um grande nó na garganta, encontrei uma foto do mar visto da brecha da porta ou de uma brecha qualquer. Ao perguntar sobre esta, com a voz inundada de tristeza, me perfura: é que é tão ruim, filha, olhar o mar e não poder ir até lá. Paralisei com a crueza daquela oração. Em terra de gente preta, aplaudir o pôr do sol é privilégio. Eu que falo tanto, que uso tanto das palavras, não soube verbalizar nada que diminuísse esse pesar. Mas não quero falar sobre o mar, quero falar sobre nossa farsa interna. É que naquele momento percebi que essa era a minha maior "raiva" de minha mãe. Ela fura minha bolha de resistência, ela me mostra novamente uma menina assustada, ela arranca da cova aquela criança chorona que eu tanto lutei pra enterrar, puxando o cabelo de tanto ódio de ter nascido assim. E aquim no meio dos barracos e da lama que vinha da lagoa do São Cristovão, ela me mostra o feio. Cada retalho horroroso da nossa linha do tempo sem seguidores. Ela rasga o véu frágil que me separa da nossa realidade. Seus resmungos embriagados de lembranças me puxam de maneira brutal para o lugar que dolorosamente ocupamos nessa estrutura. Ela me fornece pequenas doses de ódio quando eu começo a falar doce demais. E no final, quando tento distraí-la da dor, é por medo que ela acorde e me chame também. É egoismo da minha parte não querer que ela saiba da ferida infeccionada desse país, que igual à ela, muitas Carolinas choram em quartos de despejos. E quando peço para ela ser forte sou a pessoa mais injusta do mundo, porque meus pés doem menos do que os dela. E ontem quando ela chorou me pedindo ajuda, repetindo incessantemente que gente burra é assim mesmo. Lembrei de Abdias do Nascimento e pensei: como estancar o nosso banzo e meu colo tão pequeno foi incapaz de segurar aquele mundo. Queria falar sobre coisas floridas, como quando a árvore em frente a casa do vô se enchia de cores, mas sempre parece muito errado fugir no meio da tua guerra que é tão nossa que conhecimento estúpido esse meu que ainda não foi capaz de te libertar nem que seja por um instante.
não foi sobre o mar.
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