PERMANECERMOS VIVOS É REVOLUCIONÁRIO!

Passei muito tempo pensando no que escrever para o meu primeiro post no blog. Foram horas de vídeos, pesquisas que me fizessem recordar conhecimentos prévios sobre variados assuntos, artigos, textos, posts de facebook, livros e até músicas, quando de repente, de maneira um tanto quanto espontânea, brotou na minha mente o ponto que considero crucial para que eu, enquanto homem negro militante, me apoie para que esse meio doente e estruturalmente racista não me adoeça: ESTAR VIVO JÁ É UM GRANDE ATO DE RESISTÊNCIA.

Chegar a essa conclusão não foi tarefa simples, tal qual o meu reconhecimento enquanto pessoa negra. Para se entender o contexto a qual vos falo, falarei um pouco sobre minha vivência.

Nasci em uma cidade interiorana do Ceará. Começo por assim dizer, porque por morar em cidade do interior, alguns processos no meu desenvolvimento enquanto homem preto tiveram suas particularidades (embora a maioria da nossa população comungue das mesmas experiências no que se diz respeito ao seu reconhecimento enquanto pessoa preta). Desde pequeno me foi passado de forma clara a minha etnia: por vir de família majoritariamente negra, sempre tive ciência da minha cor, embora durante todo o meu desenvolvimento (aqui marcamos da infância, até quando de fato me reconheci enquanto negro, aos 15), eu questionasse sobre várias das construções que só viria a entender melhor no futuro. Coisas simples como o porquê de eu não poder, ou melhor, de não me deixarem ter o cabelo grande, ou o fato de sempre se referirem a mim enquanto pardo quando eu me destacava em algum área no campo escolar, logo me fizeram entender que: meus acertos me distanciavam, pelo menos na ótica das outras pessoas, da minha negritude, que me fadaria desde cedo não só ao fracasso, mas a repulsa de tudo aquilo que me compunha, desde o meu cabelo, até os meus traços. Foi uma descoberta precoce, digo isso porque, na cabeça de uma criança que não fazia a menor ideia de que estava em meio a uma sociedade eurocêntrica e em todos os seus âmbitos, racista, tais descobertas tomam proporções maiores do que deveriam, e aí se inicia um ciclo de auto-ódio e mais, um ciclo que, muitas vezes não só destroem a autoestima dessas crianças, mas as acometem a transtornos mentais mais graves que, na maioria dos casos se desenvolvem durante a adolescência e juventude.

Frequentei durante a minha vida toda espaços elitistas e brancos no campo educacional - fui bolsista no ensino infantil, fundamental e médio em escolas particulares aqui da minha cidade. Por ocupar esse espaço e ter essa vivência diária de embranquecimento, tal qual por ser um aluno muito esforçado, passei a me declarar (agora com todas as letras) enquanto pardo e a me opor, como citei no parágrafo anterior, a tudo que vinha da minha etnia. Foram anos de sonhos destruídos, autoestima violada, saúde mental comprometida que se findou em muita frustração e sofrimento (pois embora eu convivesse em meio à pessoas brancas, eu não detinha o mesmo privilégio que elas). Eu observava os meus demais colegas, a forma como eles eram tratados, a simplicidade a qual eles se aceitavam e a naturalidade da valorização das suas peles claras, dos seus cabelos loiros e lisos e dos seus olhos, muitas vezes, claros. Me peguei chorando inúmeras vezes questionando Deus sobre o porquê d'Ele ter me feito escuro e não claro, dele ter me dado cabelo "ruim" e não "bom", sobre o porquê de meu nariz ser tão largo e não fino e por que eu não era igual a todos os outros que me cercavam. Além dos conflitos internalizados, fui vítima de diversos ataques racistas, lembro-me bem de uma vez que perguntei a minha professora sobre o porquê de eu não poder deixar meu cabelo crescer, enquanto muitos dos meus coleguinhas deixavam, onde ela me respondeu em alto e bom tom que "Algumas pessoas nascem com o cabelo mais duro e ruim e por isso deve mantê-los curtos e ficarem carecas, por uma questão de estética e até de higiene". Foram anos e anos sofrendo por uma realidade, que embora me parecesse alheia, não só me comprometia, como, a cada dia, me fazia sentir pior.

Aos 14 anos cheguei no ensino médio e daí pude compreender melhor todos esses processos que até então me acometiam. Entrei em contanto com movimentos sociais, de esquerda, que desempenharam papel importante no meu reconhecimento enquanto homem negro que, aconteceria um ano depois, aos 15. Foi a partir daí que comecei a indagar, de fato, sobre minhas vivências, a pesquisar e a, finalmente descobrir que tudo aquilo que acontecia comigo tinha uma categorização e um nome bem famoso que, por vezes, as pessoas esquecem ou pensam que é algo já superado: RACISMO. Quanto mais eu lia, mais eu me envolvia nessa militância e foi na chegada dos meus 15 anos que eu, reconhecido enquanto homem preto, pude me somar efetivamente ao Movimento Negro e assim, compreender que o problema não era comigo, que não havia nada de errado em mim e sim que havia algo de muito errado no meu contexto social que atingia não só a mim, mas a todas as pessoas que não se configurassem dentro do mesmo, eurocêntrico e supremacista branco.

Ao fim dos 16 e começo dos 17 anos conheci o PANAFRICANISMO. Reconheço aqui a importância dessa corrente ideológica para o meu amadurecimento enquanto militante. Um leque de possibilidades me veio à tona, fora o conhecimento de que: é preciso que se fomente e mais, que se conheça e se dissemine algo propriamente nosso, teorias pretas, de autores pretos voltadas ao povo preto. Esse modelo cotizado e de recorte que a esquerda me ofereceu, me satisfez por algum tempo, porém vejo uma necessidade de ir além. Afrocentrar em todos os âmbitos possíveis, e só assim criar uma resistência homogeneizada de nós por nós que vise, acima de tudo, a emancipação do nosso povo e o combate massivo ao racismo em geral, e é justamente por isso que também reconheço a importância de espaços online e virtuais como a fundação do Coletivo Black Phanter DNA como mecanismos de suma importância para que se conclua esses objetivos. São esses espaços que constroem debates, reflexões e servem de ponto de partida para que jovens pretos não precisem passar pelo mesmo processo doloroso que eu passei. De construção de identidade, principalmente, e é nesse quesito que eu me valido para sempre seguir questionando e instigando todos os irmãos a fazerem o mesmo. Tem que ser nós por nós. Sempre foi e agora mais que nunca precisamos de uma base sólida e fortemente construída.

Quem vos escreve é um homem preto, que foi vítima dessa estrutura racista e que reconhece que, muito mais que a militância, estar vivo já é um ato de revolução. Sobreviver a esses processos e bater de frente com o racismo diariamente já nos torna vitoriosos, porque mesmo com vivências diferentes, em algum nível nosso povo sempre é colocado numa posição inferior, de subalternidade, que faz com que creiamos que somos incapazes, inúteis, feios, e mais tantos outros adjetivos pejorativos que nos é apresentado durante nossa árdua descoberta. Como diria o honorável Malcolm X: "Nós não podemos pensar em nos unirmos com outros até que sejamos unidos entre nós. Não podemos pensar em ser aceitável para os outros até que tenhamos primeiro provado ser aceitável para nós mesmos", e isso a gente prova, todos os dias, desde que acordamos até a hora de irmos dormir, por que no fim, combater o racismo é um ato intrínseco a nós a partir do momento que nos amamos e nos aceitamos. Que continuemos firmes, nos amando e nos fortalecendo em unidade: nossa vida é a nossa maior arma contra esse sistema!



Ass., 

Icaro Silva

1 comentários

  1. Esse texto fala pra todos os pretos, com todas as diversas vivências. Pretos pelos pretos <3

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