"A juventude negra brasileira e a questão do desemprego", por Lélia Gonzalez
A colocação básica que temos de fazer, para bem interligar nosso tema, é a de que o capitalismo industrial monopolista impede o crescimento equilibrado das forças produtivas em regiões subdesenvolvidas. Queremos falar da problemática do desenvolvimento desigual e combinado. Nesse sentido, o Brasil não deixa de ser uma espécie de modelo, uma vez que sua dependência econômica neocolonial -- exportação de alimentos e de matéria prima para as metrópoles do capitalismo internacional -- juntamente com a permanência de formas produtivas anteriores e a formação de uma massa marginal caracterizam essa problemática.
Três processos de acumulação qualitativamente distintos coexistem na formação econômica brasileira e dão a marca da sua complexidade: capital comercial, capital industrial competitivo e capital industrial monopolista. A presença desses três processos de acumulação, sob a hegemonia do capital monopolista, remete-nos ao fato de que o desenvolvimento desigual e combinado acaba por integrar momentos históricos diversos. Se colocamos a questão da funcionalidade da superpopulação relativa, constatamos que, no caso brasileiro, grande parte dela se torna supérflua e se constitui em uma massa marginalizada em face do processo hegemônico. Claro está que todas as questões relativas ao desemprego e ao subemprego incidem justamente sobre essas população. E, “coincidentemente”, os mais baixos níveis de participação na força de trabalho pertencem à população negra brasileira.
Vale ressaltar, ainda, que esses três processos estão articulados de tal maneira que a manutenção de uma autonomia relativa de cada um deles, interessa ao sistema como um todo. Mas, exatamente por isso, qualquer mudança em um desses setores, ameaça o sistema como um todo. E nesse sentido, já estamos falando da questão da participação e nos colocando em um outro nível: o das práticas sociais. Ou seja, aquelas relacionadas às instâncias políticas e ideológicas que, justamente com a econômica, constituem o espaço em que se deslocam os atores sociais.
O privilégio racial é uma característica marcante da sociedade brasileira, uma vez que o grupo branco é o grande beneficiário da exploração, especialmente da população negra. E não estamos nos referindo apenas ao capitalismo branco, mas também aos brancos sem propriedade dos meios de produção que recebem seus dividendos do racismo. Quando se trata de competir para o preenchimento de posições que implicam em recompensas materiais ou simbólicas, mesmo que os negros possuam a mesma capacitação, os resultados são sempre favoráveis aos competidores brancos. E isto ocorre em todos os níveis dos diferentes segmentos sociais. O que existe no Brasil, efetivamente, é uma divisão racial do trabalho. Por conseguinte, não é por coincidência que a maioria quase absoluta da população negra brasileira faz parte da massa marginal crescente: desemprego aberto, ocupações “refúgio” em serviços puros, trabalho ocasional, ocupação intermitente e trabalho por temporada, etc.. Ora, tudo isto implica em baixíssimas condições de vida em termos de habitação, saúde, educação, etc.
Um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro na força de trabalho concretiza-se na sistemática perseguição, opressão e violência policiais que contra ele se desenvolvem. Quando seus documentos são solicitados (fundamentalmente a carteira profissional) e se constata que está desempregado, o negro é preso por vadiagem; em seguida, é torturado (e muitas vezes assassinado) e obrigado a confessar crimes que não cometeu. De acordo com a visão dos policiais brasileiros, “todo negro é um marginal (thief) até prova em contrário”. Claro está, que esse consenso setorial não é uma casualidade.
Na medida em que mais da metade da população brasileira é construída por menores de 21 anos, e que a maioria da população brasileira é, na realidade, afro-brasileira, constata-se o grave problema em que se encontra a juventude negra: o desemprego (aberto ou não). Existem atualmente no Brasil cerca de 16 milhões de adolescentes e jovens totalmente entregues à própria sorte, sem a menor perspectiva de vida; ou melhor, sua única perspectiva se constitui no banditismo e na morte. Desnecessário dizer que são negros em sua maioria. Conhecidos popularmente como “pivetes”, “trombadinhas” etc, sua idade varia de 11 aos17 anos. Caberia, aqui, a seguinte pergunta: por que, em um país que, na classificação mundial, situa-se em oitavo lugar – do ponto de vista do desenvolvimento econômico – ocorre esse tipo de fenômeno social?
Pelo que esquematicamente expusemos acima, quanto às características estruturais da economia brasileira, já temos uma parte da resposta. O chamado “milagre brasileiro” beneficiou apenas a uma minoria da população interna e, sobretudo, às multinacionais. Vejamos, em termos de distribuição de renda, qual a realidade vivida pelo povo brasileiro (de acordo com o censo de1970 que, aliás não nos informa sobre o quesito cor): 36 por cento do total da renda pessoal concentram-se nas mãos de 5% das famílias mais ricas do Brasil. “Os 10% de famílias mais abastadas, detêm 49% da renda do país. Isto quer dizer que 90% das famílias brasileiras retêm praticamente a mesma fração de renda total que os 10% no topo da pirâmide social (...) 40% das famílias mais pobres têm que se contentar com 7,7% da renda total, lutando pela sobrevivência com rendimentos inferiores ao salário mínimo vigente no país. Lutando, mas sem êxito, conforme indicam as estatísticas de mortalidade infantil no país, apenas superada pelas dos países mais pobres do mundo” (Bacha e Unger, 1978).
E lutar pela sobrevivência significa, para tais famílias, apelar para todas as formas possíveis no sentido de conseguir alimento e permanecer em seu estado de fome congênita. Significa não poder deixar suas crianças irem à escola porque, também elas, têm que ajudar nessa luta pela sobrevivência. Que se pense, aqui, nos casos de exploração do trabalho infantil em nosso país, tanto no campo quanto na cidade (em termos urbanos, por exemplo, que se pense nos pequenos vendedores, engraxates, lavadores de carro, etc.). Certamente o futuro que aguarda aqueles que sobrevivem será, para os jovens negros, a revolta em face da falta de oportunidades que uma sociedade racista procura reforçar segundo os mais variados estereótipos (“negro é burro, incapaz intelectualmente, preguiçoso, irresponsável, cachaceiro”, etc., etc.). Para as jovens negras, o trabalho doméstico nas casas de família da classe média e da burguesia ou, então, a prostituição aberta e aquela mais sofisticada dos dias atuais: a profissão de “mulata”.
Como em todos os países subdesenvolvidos, os dados oficiais sobre desemprego aberto praticamente inexistem no Brasil. Mas a grande realidade é que a maioria quase absoluta da população negra vive de expedientes, trabalhando de 50 a 100 dias por ano, sem as garantias das leis trabalhistas. Quanto a aqueles que tiveram a oportunidade de ir à escola e ultrapassar o segundo ano primário, sentem mais claramente o que significa ser negro no Brasil. Porque tomam consciência do mito da democracia racial, do logro que significa o artigo da Constituição que afirma que “todos os brasileiros são iguais perante a lei”. Porque sabem que, mesmo com igual e até melhor capacitação que os brancos, serão preteridos; qual então a saída que se lhes apresenta? Se conscientes e assumidos, partem para a denúncia de tais arbitrariedades; se não, aceitam a situação tal como está e, aos poucos, para “subir na vida”, começam a pagar o seu preço, o de embranquecimento.
Em um país onde, em termos de mercado de trabalho, a procura é maior do que a oferta e onde existe uma divisão racial do trabalho, a situação da juventude negra é, obviamente, a do setor mais atingido pelo desemprego aberto ou disfarçado. Graças ao racismo e às suas práticas, essa juventude encontra-se numa situação de desvantagem em termos de educação, de trabalho e até mesmo lazer. Que se pense sobre a sua “evasão” das escolas de samba a repressão policial e as provocações de que é objeto quando, aos milhares, se dirige para os clubes de “black soul”. Até mesmo os setores ditos “progressistas”, acusam-se de alienação em face do imperialismo americano; querem obrigá-la a dançar apenas o samba, a permanecer nas escolas de samba que esses mesmos setores foram os primeiros a invadir, abrindo caminho para a exploração oficial em termos de turismo. E note-se que os americanos (imperialistas) são a grande fonte de renda das instituições turísticas oficiais brasileiras. Já estamos falando aqui da exploração, comercialização, distorção e folclorização da cultura negra. Seus beneficiários certamente não são jovens negros, mas a minoria branca dominante que, desse modo, paternalisticamente, quer lhes fazer crer que estão no “melhor dos mundos possíveis”.
Nesse sentido, como organização de caráter político, foi que se deu a criação do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em junho do ano passado (1978). Seu objetivo fundamental consiste na mobilização e organização do povo negro para lutar contra a superexploração econômica de que tem sido objeto, assim como contra a “mais valia” cultural e ideológica dele extraída pelo grupo branco dominante.
IDÉIAS-CHAVE:
- Análise do “desenvolvimento desigual e combinado”.
- Divisão racial do trabalho (o capitalismo branco envolve, igualmente, os brancos sem propriedade).
- Os jovens são levados à falta de perspectivas.
- A perseguição policial.
- A finalidade da criação do MNU – Movimento Negro Unificado.
Resumo apresentado na Segunda Conferência Anual do AFRICAN HERITAGE STUDIES ASSOTIATION – APRIL 2629, 1979 (Painel sobre: The Political Economy of Structural Unemployment in the Black Community).
Pittsburgh, 28 de abril de 1979
0 comentários