PARA ELES, FOMOS FEITOS PARA MORRER.
Uma homenagem a todos aqueles que partiram antes mesmo de fazerem história. Resistiremos!
Por: Andressa Vasconcelos.
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil |
Essa noite lembrei de um amigo. Estava com insônia, relendo o texto “A favela existe para não existir” e lembrei de um amigo. Lembrei do sorriso dele. Lembrei da voz e da risada dele. Lembrei da nossa professora de geografia, do primeiro ano do ensino médio, gritando seu nome toda vez que ele soltava alguma piada que não condizia com a aula… e a turma ria. Lembrei da sua primeira namorada e a zoação geral quando os dois resolveram sair, para uma Parada LGBT, e a moça em questão tirou a blusa e ficou apenas de sutiã. Lembrei das brigas de ambos no caminho para a escola e todas as vezes que a moça brigava com ele, para o bem dele. Lembrei das vezes que sentávamos na lanchonete, em frente a escola e ele pagava o lanche de todo mundo. Era o sorriso em pessoa, a alegria em pessoa e onde ele estava, ali também estava a felicidade que ele emanava. Senti saudade.
No começo de 2017, recebi uma ligação avisando que M. havia sido baleado e já não se encontrava entre nós. A notícia me desestabilizou. Lembrei de todos os momentos e de todas as aulas, todas as nossas brincadeiras e brigas. O grito da professora ao ouvir sua voz as expulsões de sala de aula, seguida de gargalhadas da professora. M. era a alegria no lugar e exalava felicidade por onde passava.
M. foi assassinado, aos 18 anos, deixando um filho recém nascido, uma esposa e uma mãe, que estiverem ao seu lado até os últimos segundos de vida. M., assim como tantos outros que foram assassinados enquanto abria esse link, se juntou as estatísticas dos 63 jovens negros mortos por dia no Brasil.
Jorge Roberto chora a perda de seu filho, Roberto, de 16 anos. |
M. não está sozinho. Ele faz parte de uma estatística que leva o Brasil para o mapa de um dos países mais racistas do mundo e, talvez, o que mais assassina negros no mundo, vivendo um verdadeiro genocídio onde o foco principal é a extinção de todos aqueles que não condizem com a cor que, para eles, é a correta.
“Dudu me disse: Mãe, minha irmã Patrícia está quase chegando, vou esperar na varanda de casa. Eu disse: Vai, filho. Ele foi esperar a irmã e nunca voltou. Logo depois ouvi o estouro, a gritaria, e vi meu filho caído sem vida. Era um menino saudável, ótimo aluno”, Terezinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo, criança de 10 anos assassinada no complexo do alemão.
Em 2015 uma história chocou. Foi Eduardo, uma criança favelada, de apenas 10 anos, assassinada no portão de casa. Segundo testemunhas, o policial responsável não somente assassinou, como também ameaçou sua mãe caso denunciasse o abuso policial e o assassinato de uma criança. Uma criança.
Em 2015, cinco adolescentes foram violentamente assassinados e, eu ouso dizer, abatidos, no Complexo do Chapadão, em Costa Barros. 111 tiros. Os cinco jovens foram, ao Parque Madureira, comemorar o recebimento do primeiro salário do mais novo do grupo, Roberto de Souza Penha, 16 anos.
Em 2016, Luana dos Reis foi espancada por policiais após se recusar a ser abordada por policiais homens, em Ribeirão Preto, o que mais tarde a levou a óbito. Familiares de Luana gravaram um vídeo onde ela, transtornada, relata o espancamento. Luana tinha o direito de ser revistada por policiais mulheres.
Em 2014, Claudia Silva Ferreira teve seu copo de café confundido com arma. Claudia levou dois tiros. Claudia em seguida foi colocada no porta-malas do carro da polícia, que estava aberto. Claudia caiu do porta-malas e foi arrastada, por um pedaço de roupa, por 350 metros. Cláudia faleceu e teve parte do seu corpo dilacerado.
Em 2017, João Vitor, de apenas 13 anos, foi morto por seguranças do Habibs enquanto pedia comida.
Esse mês, um catador de 38 anos foi morto por dois tiros disparados pela polícia militar em Pinheiros, SP.
O que todos esses jovens têm em comum é sua cor. Todos são jovens negros, mortos por serem considerados suspeitos pelo Estado que mais mata negros no mundo. E, enquanto fecharmos os olhos para a realidade de que não somos todos iguais, essa realidade não mudará. Estamos sendo assassinados por um Estado racista que nunca nos desejou e nunca nos quis por aqui. O Brasil — e o brasileiro — não se importam com a população negra aqui existente. Nunca se importou e nunca se importará e, enquanto estivermos parados, essa realidade não mudará, porque nós não somos desejados por eles.
Não fomos trazidos para o exílio afim de que ajudássemos na construção do Brasil. Fomos trazidos por meio do tráfico humano. Escravizados e desumanizados. 300 anos depois essa realidade não mudou, apenas se adaptou. E estamos sendo assassinados.
Enquanto eu chorava ao lembrar de M. e de cada um dos jovens negros assassinados entre 2014 e 2017, mais outros jovens foram assassinados. O Brasil não nos quer aqui, ele nunca nos desejou. Fomos desumanizados e continuaremos a ser, porque não fomos feitos pra pertencermos esse lugar. Isso aqui é uma terra de sequestro.
Dedico esse texto a M., um grande amigo. (1998–2017)
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