MALUNGA: NEGRITUDE E ESCOLAS DE SAMBA

  A trajetória de Thereza Santos, uma mulher preta nascida no final da década de 1930 no Rio de Janeiro, sua noção de identidade negra e seu trabalho na escola de samba Estação Primeira de Mangueira. 


 Toda essa polêmica em torno dos desfiles das escolas de sambas Paraíso do Tuiuti, com o enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, e Acadêmicos da Salgueiro, com o enredo “Senhoras do ventre do mundo”, em homenagem as mulheres pretas, levantou um amplo debate sobre como essas escolas de samba, não só elas mas também as outras, tem sido um grande Quilombo e lugar de critica social, algo que não é de hoje, porém que a internet e a militância branca de esquerda só descobriram agora, ao que parece. Então me lembrei de nossa mais velha, nossa MALUNGA, Thereza Santos, de sua passagem por escolas de samba e de todo seu trabalho como carnavalesca e militante do Movimento Negro Unificado – MNU.


 Thereza Santos é o nome político e artístico de Jaci dos Santos, uma mulher preta formada em Filosofia pela Universidade do Rio de Janeiro, teatróloga, atriz, professora, filósofa, carnavalesca e militante do movimento negro, a nossa Malunga, como a própria se denominou em seu livro, e como também denominava seus irmãos de luta. Malunga é uma palavra de origem Africana, mais precisamente de Angola, do kimbundu dilunga, e aqui no Brasil foi utilizado por Africanos escravizados para se referir àqueles que chegaram aqui no mesmo barco, no mesmo navio, no mesmo dia, e é empregada por Thereza com o significado de Irmão/Irmã. Thereza relata que sua percepção e noção de identidade negra, do que é ser uma pessoa preta, é fruto de sua família que era “uma família negra não só na cor da pele, mas nos valores culturais” quando se trata de sua família, nossa malunga faz questão de pontuar que sua família preservava muitos valores culturais africanos, como viver em grupo familiar, a exemplo na África - sua casa que era parecida com uma Tabanca (Aglomerado da mesma família, como se fosse uma aldeia da Guiné-Bissau) onde todos tinha um papel definido, como deveres e obrigações. Foi através desses valores africanos que ela foi ensinada a ter orgulho de ser uma mulher preta, a compreender a diferença entre o preto e o branco e lidar com o racismo na infância. Segundo ela, “Nesta época, eu já tinha consciência e orgulho de ser negra, em função dos ensinamentos de minha avó e minha tia-avó, embora não soubesse bem para que servia” [1] e é exatamente aqui que entra o título desse texto. a sua negritude está interligada à escola de samba e ao samba. Ela nos deixa isso evidente ao abordar que seu início de consciência e os caminhos a seguir se deram a partir do contato com a favela e o que lá tinha de melhor: o Samba.



Escola de samba mirim Mangueira do Amanhã


 Recém chegada ao Engenho Novo na zona norte do Rio, Thereza e sua família moravam em uma rua na qual eles eram os únicos negros, fato que foi o estopim para que ela fosse atrás de, como usamos muito hoje em dia “afrocentrar” seu ciclo de amizades. Thereza, quando fazia tudo o que os brancos de sua vila queriam, era a maravilhosa e recebia elogios do tipo “é uma verdadeira negrinha de alma branca”, mas quando não, era chamada de “tiziu, macaca e "negro quando não faz na entrada, faz na saída”.Foi essa crueldade responsável por mudar muitas coisas na mente dela. Através disso, Thereza fez amizades com pessoas negras, que moravam em uma favela ao final de sua rua. Aos 12 anos ela conheceu uma escola de Samba, a Índios do Acau: “Fiquei deslumbrada, nunca tinha visto nada igual. Embora minha família fosse festeira, era diferente. Escola de Samba era outra coisa” [2]


 A escola de samba foi um verdadeiro Quilombo para Thereza, um lugar em que ela se sentia bem, protegida, ao mesmo tempo em que foi o espaço que a despertou para a consciência racial e a necessidade da luta. O samba surgiu da mistura de ritmos africanos, trazidos pelos nossos ancestrais que vieram da África na condição de escravizados, e por conta do racismo, foi perseguido e reprimido, levando muitos sambistas presos apenas por tocarem pandeiro como já relatou João da Baiana em entrevistas.


 “Assim que nasceu, no começo do século passado, o samba aparecia com frequência nas páginas policiais dos jornais. A batucada só era aceita quando tocada por orquestras em roupagem folclórica, estilizada, nos teatros frequentados pela elite. Já as rodas improvisadas em bares ou nas ruas, onde os sambistas negros e pobres tocavam pandeiro, tamborim e violão, eram vistas pelas autoridades como reunião de desocupados e bandidos. Muitas vezes, os músicos e cantores, vários deles ex-escravos, acabavam levados para a cadeia simplesmente por sambar.” - Matéria do O DIA [3] 


 O samba desde seu início tem em seu componente a negritude, assim como as Escolas de Samba, que, além do que conhecemos como o tradicional desfile, ainda mantinham projetos e ações sociais em suas comunidades. Aliás, é a própria comunidade a responsável pela produção dos desfiles e a continuidade das escolas. Escola de samba sempre foi Quilombo, e os enredos dos sambas sempre tiveram críticas sociais, principalmente na época da ditadura. Diante disso, mais uma vez a esquerda branca nos mostra o quão desinteressada ela é no que diz respeito à pauta racial e, nesse sentido, Thereza novamente é nosso ponto de partida e referencial. Após se descobrir nas escolas de samba, ela também passou a fazer parte do “partidao” e da juventude comunista brasileira e relata muitas de suas dificuldades: “Eu era a única negra do meu grupo e sempre que buscava espaço para abordar a questão do negro, via de regra recebia como resposta que a questão era social e não racial... os pouquíssimos negros que encontrava dentro da juventude comunista repetiam o mesmo discurso do branco: de que a questão não era racial e sim social.” [4]


 Thereza, essa mulher preta, guerreira que foi, continuou sua luta dentro e fora do partido e, sem abandonar o seu quilombo, as escolas de samba, decidiu fazer um trabalho na escola da Mangueira, situação em que novamente pudemos observar o descaso da brankkkitude para as nossas demandas: “Comecei a pensar em fazer um trabalho na Mangueira, no partido a reação foi de pessimismo e descrença, não liguei, já não era mais um boi mandado”... “O partido dizia que aquilo não ia dar em nada, mas não me deixei abater e prossegui”... “eu continuava meu trabalho politico no partidão e como eles não acreditavam no trabalho na escola e nem o apoiavam, eu separava bem uma coisa da outra”


 São relatos que nossa mais velha nos mostra e nos permitem refletir: "por que será que a esquerda se surpreendeu tanto com a critica social da Tuiuti nesse ano de 2018?" (isso é pra gente não se esquecer de que estamos por nossa conta, sempre foi assim). Thereza desenvolveu, na escola de samba, aulas de reforço de matemática e de português e aulas de pintura, teatro infantil, criação de uma escola de samba mirim, tudo isso durante 5 anos, com o apoio de muita gente de dentro da comunidade, de dentro da escola, de pessoas do samba, com quem Thereza tem o mais profundo respeito. Ela também aprendeu muito com eles, ao ponto de ser passista, aprender a sambar e tudo mais, uma troca linda. Para além da Mangueira, ela desenvolveu um trabalho junto a Mocidade Alegre, em 1980, sendo responsável pelo enredo sobre os negros na política “Embaixadas de Many Soyo e Many Bamba", ano em que a escola se saiu campeã, e assim prosseguiu sendo responsável também pelo enredo do negro na economia “Vissingo, Canto de Riqueza” (1981) e sobre o negro na cultura “Malungos, Guerreiros Negros (1982)".


A contribuição de Thereza Santos para as escolas de samba foi infinita. Assim como ela teve papel de extrema importância no MNU, no movimento de mulheres negras, no qual ela abordou o racismo do movimento feminista e seu combate e rompimento com ele. De mesmo modo, ela teve o entendimento de que éramos um povo e participou das lutas de libertação da África, em Angola e Guiné-Bissau, onde desenvolveu brilhantes trabalhos na área da Cultura e desenvolveu também uma colaboração com o projeto de Amilcar Cabral, tendo a educação o eixo fundamental. Esse texto seria pequeno para abordar toda a trajetória e importância de nossa Malunga para a nossa luta, mas certamente é importante que a conhecermos e saibamos de suas contribuições.


Malunga Thereza Santos, VIVE!

Thereza Santos - foto acervo pessoal



[1][2][4] Livro: Malunga Thereza Santos - a historia de vida de uma guerreira 
[3] https://odia.ig.com.br/diversao/2016-11-27/perseguido-por-decadas-o-
samba-chega-ao-centenario-amado-pelos-brasileiros.html

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