Desculpe o transtorno, mas precisamos falar sobre exílio afetivo.
Por Fê Martins
Antes de mais nada, peço licença pra falar. Eu não acho que esse seja o melhor espaço para dialogar sobre isso, porém, na inviabilidade de usarmos outros meios, puxem suas cadeirinhas que nós vamos ter dois dedinho de prosa, com muito amor, cuidado e respeito:
Pouca gente sabe disso, mas no final de 2015/início de 2016, eu quase morri. Começou como algo simples. Eu tinha acabado de terminar um relacionamento, desses que a gente nem acha que vai acabar. Até aí tudo ok para os padrões de 2015. Não havia nada de novo na Babilônia. No entanto, o que parecia ser só uma fase começou a perdurar.
Um sentimento de solidão começou a se apossar de mim. Eu me sentia preterida, insuficiente para ter um relacionamento, indigna de amar e, principalmente, ser correspondida. Algumas pessoas diziam que, com o tempo, tudo ia se ajeitar, eu ia ficar bem de novo e que todo mundo sempre fica assim quando gosta muito de alguém e, por algum motivo, não podemos mais ficar com essa pessoa. Na minha cabeça, eu sabia que isso tudo não passava de papo furado. O meu problema não era um simples caso de pé na bunda, o meu problema era ter a pele escura demais para o amor. Diante do peso dessa constatação, os meus ombros falharam e eu já não me sustentava mais de pé. Parece exagero, mas eu não dava mais conta de ser minimamente funcional: eu perdi 12kg, tinha dores intensas por todo o corpo, enjoos frequentes, etc.
Nessa época, haviam apenas quatro palavras que ocupavam minha mente: solidão da mulher negra. No entanto, conversando com outras pessoas, pude perceber que o que eu sentia era uma experiência mais comum do que podia supor minha vã filosofia. Outras mulheres negras, obviamente, sentiam o mesmo. Homens negros também, embora com nuances diferentes. Crianças negras, idosos negros e por ai vai, igualmente. Aí a ficha caiu: não se tratava de solidão da mulher negra, mas sim de solidão do povo preto. Ok, agora eu tinha uma resposta mais adequada, só que eu ainda não me contentava com isso. Solidão me parecia uma palavra fraca demais, pequena demais para abarcar o que eu e tantos outros estávamos sentindo.
Solidão é algo universal, ou seja, todos nós, seres humanos, em algum momento nos sentimos ou nos sentiremos assim. Solidão não tem agente nem causa, ela acontece e pronto. Solidão é algo que dá e passa. Solidão é um sentimento espontâneo, natural. Solidão é algo só nosso e de mais ninguém. Então, como que a solidão poderia explicar o profundo sentimento de desamparo que se abatia sobre todo um povo? E, se não era solidão, que diabo era aquilo? Foi aí que, de súbito, como o acender de uma luz, a resposta apareceu na minha mente tão nítida quanto água cristalina: “EXÍLIO!”.
Exílio, na definição mais comum, é o banimento de alguém de seu país de origem.O exilado é aquele que é arrancado do seio de seu lar e levado para outro lugar, longe dos seus, é aquele que perambula por ai sem poder voltar para onde veio e sem ter para onde ir. O exilado é um eterno desabrigado, em todos os sentidos possíveis: não tem origem, não tem destino, não tem companhia durante a viagem, não tem nada além do vazio e do eco da própria voz. Colocando essas ideias pro campo afetivo, o exílio é amputação da nossa afetividade, começada com o processo de escravização do povo preto. Ao nos trazerem para o lado de cá do Atlântico,onde tudo é túmulo, a supremacia branca nos retirou as três dimensões de nosso afeto: a família, a terra e a espiritualidade. Isso causou em nós feridas profundas.Tornamo-nos sozinhos, distantes de tudo o que amamos, longe de quem nos amava, possuídos por uma profunda sensação de deslocamento.O exílio afetivo, diferentemente da solidão, é uma das faces de um projeto extremamente sofisticado, violento e bem articulado cujo único objetivo é o genocídio do povo preto. O exílio afetivo, para além de ser uma sensação de vácuo, é um espectro de morte.
Foto por:
Dinho Faber.
Por outro lado, o exílio não é de todo desastroso.Se tem um povo que sabe se adaptar às mudanças, esse povo é o povo preto.Nós sempre, independentemente de qualquer coisa, nós sempre arrumamos um jeito de sobreviver.Nesse sentido, o exílio afetivo não foge à regra. Longe nossas famílias de sangue, nós criamos famílias de consideração. Distantes de nossa terra, nós criamos pedacinhos de Afreeka nessa tumba. Na impossibilidade de cultuarmos nossos orixás, nós aprendemos a reverenciá-los em silêncio,na surdina. Exilados de nossos afetos, nós aprendemos a exercitar a arte do dengo.E é por isso, só por isso, que subvertemos o processo de colonização da nossa afetividade e que um dia sairemos dessa tumba.Sigamos!
2 comentários
Sentimento bem detalhado de uma realidade obscura que só quem está nela sabe o que é. Obrigado pelo texto que expressa a vivência de uma pessoa rejeitada no convívio afetivo. Sentimento que para outros é bobagem.
ResponderExcluirLindo texto !
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